Era o nosso dia. Afinal, há dois dias o Bruno estava no quartel, e a expectativa de vê-lo era de que nada acontecesse de errado.
No entanto, foi um dia de surpresas.

Enquanto esperava ao lado do espaço reservado para o som, mantido preservado por faixas amarelas,  senti que alguém me tocava na cintura. A senhora sentada ao lado, com imensos óculos sem armação, me cutucava apressada. “Mulher, não vá ficar na minha frente, viu? Quero ver meu filho.” Ao ouvir a primeira expressão “mulher” senti um calor subindo. Detesto essa expressão quando usada para designar uma pessoa desconhecida. Sempre me incomodou desde que mudei para Curitiba. Custava um senhora?

Levantei uma sobrancelha, e tentei ser educada. Não sei se consegui. Tentei. “Não se preocupe. A senhora (entonei a palavra pausadamente), tanto quanto eu iremos ver nossos filhos”. Até o soldado que estava de prontidão ao lado, me olhou com uma cara!

Mas, não parou por ai. Um empurra empurra, uma movimentação ao saber que os meninos iriam entrar ainda vestidos como civis. Não arredei pé de onde estava, é claro.  Uma loira, com longas unhas pintadas de marrom e uma roupa um pouco justa para o horário bateu em meu ombro – quase uma empurradela – perguntando se podia passar. Quando ia dizer que já estava no limite da faixa, ela deu uma forçada e passou por mim, avisando que queria “ir ali, com aquela mulher”. E pasmem, ao passar por mim, se virou abruptamente avisando: “eu menti, vou ficar bem aqui na sua frente”, zoando da minha cara.

Só comigo acontece dessas coisas? Ou porque preciso ser mais tolerante? Ou porque o ser humano perdeu a decência e o bom senso? Os três no mesmo combo! Outra vez o soldadinho que aguardava as ordens para ligar as caixas me ouviu retrucando: “ tenho pena do seu filho por ter uma mãe mentirosa”. Antes que a tensão aumentasse, o Hélcio me chamou para ficar em frente à ele, no caminho só fui ouvindo do Hugo: “mãe, não fala nada, mãe. Por favor”, conhecendo a mãe que tem. Nossa, a ferveu meu sangue. Se a “mulher” ficou brava, nem deu para notar. Empunhou o celular com capa de glitter e pompom na extremidade e nem prestou atenção quando um senhor veio em solidariedade dizendo: “nós chegamos cedo e esse povo que chega atrasado quer a janela. Irritante!”. Digo o mesmo, senhor…. Toda a razão.

O toque do trompete veio ajudar a acalmar os ânimos e nos concentrar no espetáculo. Simbolismo à parte, foi bonito. Dois drones documentaram as idas e vindas dos novos soldados; os hinos da companhia e as músicas de ordem de cada batalhão. Ao fim, um discurso do comandante do 5.°  GAC lembrando que aquele era o dia da mulher e que todas nós estávamos de parabéns por emprestarem seus filhos para o serviço à pátria. Que tivéssemos a confiança e segurança de que bons homens sairiam dali.

A procura por entre as fileiras do rosto do Bruno – afinal todos são muito parecidos – ficava de olho no senhorzinho que estava sentado no lugar que eu estava antes. Ao enxergar o filho, começou a chorar. Um homem mirrado, com olhinhos azuis que iam ficando com o branco vermelho, e com sorriso de satisfação. “Eu vi meu menino, senhora. Eu vi meu menino”. Cortou meu coração e se até o momento não tinha chorado, senti que a emoção estava contida pela irritação com as duas últimas histórias com as mulheres.  Ao perguntar se ele estava bem, pegou no meu braço e me avisou que ia sentar. “Se sentar, fico bem. Não tomei meu remédio”. Já estava olhando ao redor a procura da padiola que tinham colocado na beira no pátio. Mas, ele se recuperou e ao ser avisado que poderíamos todos procurar nossos filhos, netos, sobrinhos, afilhados e por aí vai, ainda consegui vê-lo mancando pelo pátio.

Outro estouro de boaiada. Ao fim do evento, a tão esperada comunicação. “Senhores pais e responsáveis, podem procurar os soldados em seus batalhões. Tenham um bom dia”.  Não esperei duas vezes – e nem ao Helcio e nem ao Hugo – fui em direção ao 3.° Batalhão. Só ouvia atrás a voz do Hugo avisando que estava logo atrás. Procura daqui, procura dali, algumas baterias já tinham se dispersado e os rapazes vinham em busca da família, descobri onde eles estavam.  Chegamos juntos, e eles foram dispensados para voltar para dentro do prédio. Nova aflição.

Aos poucos, eles iam retornando um a um. Dos primeiros que vi saindo a procura do meu guri, olhei cada um. Senhor! Queria que meus olhos fossem uma máquina fotográfica. Que emoção. Que brilho. Uma mistura de ansiedade, de medo, alegria com pressa. O tempo urge, mesmo sabendo que a partir daquele dia, o tempo para eles será só um: da vida militar.

Regrados, afinal mesmo em dois dias de quartel ordens são ordens, eles caminhavam em direção aos braços abertos das mães, namoradas, noivas… E finalmente, vimos o nosso Bruno. Suado, ansioso mas com uma ânsia como nunca tinha visto em nos abraçar. Me joguei nos braços dele como se nunca o tivesse visto antes, com uma saudade urgente, com a mesma sensação de quando ele nasceu e não chorou. “Você está bem?”. E a resposta ao me largar e ir para os braços do pai foi a terceira onda de suspensão do dia: “Tô f*** muito f****” Ele tinha sido escolhido para ser o xerife do seu grupo. O único conselho que pude dar  era que sabia como ser um líder. Que ele deveria ser o exemplo.

O menino que eu deixei na porta do quartel há dois dias, tinha uma voz mais profunda, rouca, daqueles de quem cantou muito alto, muitas vezes… O corpo mais firme, reto, mesmo no uniforme largo, parecendo um número maior do que ele. E falando um linguajar estranho … Aí veio a explicação: estava sem o cinto da calça; e a bota estava trocada. Ou seja, ele estava calçando dois pés direitos. Olhar atento do pai – que também serviu o exército e entende dessas bodosidades (dificuldades) – chamou a atenção. “Deixa para lá, deixa disso, pai não olha” soubemos que as botas corretas estavam embaixo da cama pela manhã. Ao voltarem do treino, tinham sido trocadas. Uma brincadeira de muito mau gosto, os chamados trotes que ainda não descobri como eles  identificam no jargão militar. Mais uma vez, o instituto animal maternal se sobressaiu, mas fiquei quieta.

Fomos conhecer os alojamentos. Beliches bem organizados e distribuídos e separados por armários de ferro, ao longo de um grande alojamento. Em frente a cada beliche, fixado  abaixo da janela, duas cordas de nylon. Uma para cada soldado pendurar as roupas. O armário dele, o soldado 736, de certa forma organizado. Lembrou-me que da metade das coisas que  trouxe a pedido da lista, nem ia usar. Era tanta emoção que até esqueci de trazer. Ao sair do quartel, vi algumas mães com sacolas em punho.

Dificuldades? Sim, e  era esperado. A comida é boa, diz ele.   Comem muitas vezes ao dia, mas claro, tem que ser rápido. Muita tarefa, pouco tempo para tomar água. A boca do Bruno estava  descascando pelo sol. Banho, de poucos minutos. E na noite anterior, ele não havia dormido. 10 redações de 50 linhas em duas horas e a não entrega da tarefa levaram ele e outros a ter que finalizar. Como diz o bordão: “soldado não tem tarefa, tem missão”. Missão dada, missão que deve ser cumprida.  

Em falar em linguajar, descobri outros (não que não os tenha escrito em alguma matéria sobre o exército ou ouvido em entrevistas militares, mas ali era como se estivesse em outro mundo): o bizu (as dicas); o sargento tal está às 10 horas (para sinalizar que estava à minha esquerda). Fiquei tonta. Minha alegria de mãe em ficar sentindo o cheirinho dele durou pouco. Acredito que não tenha durado mais de 30 minutos, mas para  quem estava com o coração apertado de saudades, valeu!