Entre as lembranças como jornalista estão as milhares de entrevistas que já fiz ao longo de 28 anos de profissão. E nestes, não podiam faltar os encontros com ex-militares que me detalharam sua participação em parte da história desse país.

Joel Joaquim de Almeida é mais um deles. Quando conversamos, o militar reformada da Força Aérea Brasileira estava com 85 anos. Marquei por telefone a entrevista, depois de ter sido procurada pela filha Adri Duarte me contando a última do pai. Octogenário, Joel se formaria na segunda faculdade, de Fisioterapia.Em 1979, tinha recebido o diploma em Serviço Social.

Os olhos brilhantes em um rosto bonachão, pessoa de riso fácil me contou que o ápice seria entrar no salão de baile ao som do Hino da Escola de Especialista da Aeronáutica, uma lembrança dos idos de 1964. Parte da música, era, afinal, um resumo de sua trajetória.

“Com os pilotos e asas seremos/Um conjunto de todo eficaz/Por mais forte o inimigo não vemos/Que possamos temê-lo jamais.”

Ao me contar a história, me pediu desculpas pelas lágrimas. O tom das lembranças foi dado com o leve sotaque carioca. Aos 9 anos, o menino de Nova Iguaçu, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sabia o que queria da vida. Se lhe perguntassem, a resposta vinha rápida e certeira: “quero entrar para a escola de aviação.”

Chupando laranja, muitas das horas dos dias eram destinadas a apreciar o voo rasante dos aviões de guerra, em um campinho próximo de sua casa. Vivia-se a Segunda Guerra Mundial e Joel morava em um país que apenas treinava homens. A fascinação era olhar aqueles “monstros” verdes sobrevoando o quintal de sua casa e assustando as galinhas. Nessas horas, o menino carioca atirava flechas ao ar para atingir os rasantes.

Aos 13 anos, criou coragem e passou de observador silencioso a espectador curioso. Durante o pouso mais demorado de um dos aviões, o piloto veio lhe perguntar o que fazia ali. “Quer voar, menino?” O olhar de Almeida brilhou com a expectativa de realizar parte de seu sonho. “Não pode. É perigoso”, foi a resposta – para sua tristeza. A aventura ficou para depois, mas continuou persistente.

No tempo que via aviões voarem nos céus cariocas, tinha deixado a escola de lado. Não por vontade própria, mas por causa de uma briga entre colegas. “Bati no Rubens”, contou-me. Na época, indisciplina era cobrada com expulsão e a certeza de que escolas do bairro não aceitariam o “brigão” nos bancos escolares. Ficou triste, mas não desistiu. Sozinho, o pré-adolescente, com corpo de quase adulto, valia-se da Maria Fumaça, que saia da Estação de Nova Iguaçu, e de bondes da Ferrocarril Carioca, que cortavam os bairros do Rio, para ir de escola em escola. Batia na porta e dizia singelamente: “Quero estudar”.

E, finalmente, a oportunidade para voltar à escola surgiu, no dia que foi pedir pouso na casa dos tios, em Santa Tereza, bem pertinho dos Arcos da Lapa. Mas o pedido, veio seguido de um recado da tia Zena: estudar apenas era impossível, tinha que trabalhar também. Primeiro foi procurar a chance de emprego. Tentou em um comércio de suco de laranja, no Largo Carioca, na Rua Eduardo Toledo Franco. Nada. Seguiu em frente. Desistir não era com ele. Entrou na Rua Carioca e encontrou um amigo que buscava o mesmo.

No caminho, passaram em frente a um casarão imponente, bem antigo. A placa de “Escola Particular” fez Almeida arregalar os olhos. Audácia, sempre foi seu forte e, seguido do amigo mais tímido, subiu as escadarias e bateu na porta. D. Estelita me recebeu desconfiada. “O que quer, menino?”

A resposta simples e irreverente de alguém que, notadamente, não tinha posses para pagar os Cr$ 5 mil mensais – pouco menos de R$ 2 na moeda de hoje – recebeu a proposta de trabalhar como auxiliar de limpeza, em troca de conhecimento. A tarefa seria raspar a cera com esfregões pesados e desajeitados e encerar o chão. Nem pensou duas vezes. Aprendeu as letras e as contas e saiu “doutor”, porque quem tinha o domínio das quatro operações, sabia ler e escrever, tinha tudo.

Diante de tão envergadura educacional, buscou um caminho – curto e certeiro – para entrar, finalmente, na Escola de Aviação. Era 1945 e a guerra havia acabado. O jeito encontrado foi procurar outra tia, Petronília, babá dos filhos do general Gustavo Cordeiro de Farias. O ilustre, além de militar e amigo pessoal de Getúlio Vargas, também era Diretor de Ensino do Exército. Ao recebê-lo em sua casa, perguntou-lhe: “O que quer eu faça por você, menino?”. Ouviu as histórias de Almeida em busca de ensino, escreveu uma carta e o recomendou para a Escola de Aviação Militar Campo dos Afonsos, em Marechal Hermes, zona norte do Rio de Janeiro, onde ingressou na Escola de Cadete do Ar dos Afonsos. Seguiu carreira; fez inúmeros cursos, entre eles o mais almejado: na Escola de Especialista da Aeronáutica, em 1964, em Guaratinguetá, no interior de São Paulo. Cumpriu seu sonho.

Mas, Almeida não parou por aí. Em 1970, entrou para a reserva como 2.º Tenente. Tinha passado por São Paulo, voltado para o Rio de Janeiro, e a instabilidade política e social da época fazia-o desejar morar em uma cidade mais calma e com mais oportunidades de ensino para os filhos. Tinha quatro.

Cidade das Araucárias e das oportunidades

Um médico seu amigo lhe indicou Curitiba, capital do Paraná, e disse que a cidade traria boas oportunidades. Novamente, para unir o útil ao agradável – o filho, Joelmir (já falecido) – queria cursar a Escola Militar – optaram para trocar o calor do Rio de Janeiro pelo frio de Curitiba. Não se arrependeu. Mais tarde, mudou-se para Pinhais. Após formado, virou sanitarista do serviço público.

Ao chegar aos 70 anos, foi convidado a aproveitar a segunda aposentadoria em casa. “Nem pensar!”, determinou. O pai de sete filhos, 21 netos e 26 bisnetos nunca foi de desistir.

Texto publicado na Gazeta do Povo em 7/02/2015.