Pai, resolvi lhe escrever hoje para falar do seu neto. Não podemos mais trocar os nossos áudios de todos os dias pelo WhatsApp, mas, tenho certeza que essa mensagem vai chegar até o senhor, porque Deus é pai. E eu tenho muito para lhe contar…

O Vitor está bem. Assim, como todos nós, com muitas saudades. Outro dia, enquanto tecia uma borboleta de crochê pensei no tempo de tantas histórias, de tantas lembranças, do que foi e do que faltou ser dito durante o tempo que estivemos juntos. Acho que esta carta vai ajudar a marcar esse tempo e perpetuar nosso amor.

E dentre essas lembranças, é claro que tinha a mais especial para o senhor desde o dia que soube que seu neto iria servir à Pátria. Lembra, pai, de como vibramos quando o Vitor foi se apresentar no Exército? Ah, sua ansiedade chegou a ser maior que a minha.

Aquela novidade, o fez lembrar do seu tempo de alistamento. E daquele dia em diante, não parou mais em nos contar histórias dessa época. Entre elas, o de ter sido dispensado, por excesso de contingente, em apenas um mês, no ano de 1975. Mas, como nos lembrava sempre, tinha valido a pena, mesmo tendo passado boa parte do tempo limpado as estrebarias, lá no quartel de Guarapuava, no interior do PR.

Que coisa boa ver o Vitor radiante ao ouvir cada detalhe, e o senhor satisfeito, daquele jeitinho de quem realizou um sonho através do neto! E foi um período que torcemos juntos, não é pai? Nesse turbilhão todo de sentimentos, teve medo também. O receio da possibilidade da dispensa nos lembrava que cada dia era uma aflição diferente. E passamos por essa juntos.

Quando chegou o internato e o período de distância do Vitor com a família, o senhor estava ali, todo dia ligando para saber os detalhes, ou até a falta deles. E foi tão bom essa partilha e aconchego! Nunca estivemos tão próximos por um mesmo amor. Do mês de choro e angústias, suas ligações me traziam conforto. Enquanto eu chorava, o senhor me acalmava. “Deixe o menino lá, vai aprender, de lá não vai sair (…)”. Nossa, parece que até escuto sua voz.

No primeiro final de semana do internato veio a primeira ligação. Eu lhe contei que chorava de um lado e o Vitor do outro. O senhor ficou encantado, cheio de orgulho, e me lembrou mais vez: “fique calma, lá é a melhor escola pra um homem”.

O seu orgulho era o nosso. “Ao menos um da família foi enfrentar um quartel”, brincava, dando risada. Quando o Vitor voltou para casa, o senhor fez uma chamada de vídeo. Muita conversa, muitas risadas. Queria os detalhes. O longe que virou perto.

Veio o campo, muitas fotos enviadas do neto para o avô, histórias que o deixaram feliz. Ainda lembro quando ouviu que os recrutas tiveram que arrancar a cabeça da galinha e destrinchar um coelho pra fazer sopa. E a tão querida foto pedida foi igual missão dada, missão cumprida. Tão logo o Vítor conseguiu fazer a imagem com fuzil, ele mandou para o senhor guardar no porta-retrato como lembrança. Só não deu tempo para fazer a foto dos dois juntos, com o neto fardado, né pai?

E se tudo estava estranho, com uma pandemia que nos amendrontava, com as mudanças do quartel, chegou o tempo de surpresas, e de tristezas. Chegou a noticia que estava doente. Foram dias se revezando entre hospital, quartel, casa. Entre guardas e plantões, o Vitor lhe mantinha informado e atualizado. Mas, nem sempre o senhor tinha fôlego para responder. Sim, o covid-19 não lhe poupou. Internado, intubado e silencioso. E no dia 18 de junho, chegou a triste notícia. Sexta-feira, às 19h30, o avô orgulhoso deu o último suspiro. Mas, como nada se encerra assim, e os sonhos também não acabam, eu dei um jeito de guardar o tempo. Afinal, o que é o tempo se não lembranças e registros?

No dia do seu enterro, seu neto estava lá, em meio a chuva. Fardado, do jeitinho que o senhor queria vê-lo – e não deu tempo-, ajudando a carregar seu caixão. Entre a letargia da dor da perda, o orgulho se manteve naquela vontade de demonstrar amor e respeito. O gorro 972 saiu do bolso e foi, cuidadosamente, depositado em cima do seu caixão, o seu presente especial, único e derradeiro. Não teve a foto que o senhor tanto queria, pai, mas levou consigo a essência do significado da vida militar que o seu neto vive, hoje. E fui além. A imaginação corre solta e o registro desejado virou ilustração. A figura saiu do papel e trouxe a emoção quando finalmente o seu neto, Sd. Chaves, bateu continência.

Hoje, quatro meses depois, o Vitor lembra das risadas, das histórias trocadas, da voz de orgulho e os conselhos do avô. E a voz ecooa para não deixar de esquecer do compromisso: “Diga pro Vitor que o vô tá gostando muito dele estar lá no quartel O vô tá gostando mesmo, que é assim que tem que ser. Qando der eu vou aí conversar com ele”. Com amor, Patrícia.

  • José Etevir Ferreira, 64 anos, faleceu de covid-19, no dia 18/06/2021.