Meu chão se abriu (….) quando eu vi meu filho daquele jeito, com marcas no pulso. Eu só pensei: não quero perder meu filho.
Um recorte do ano de Maria*, mãe de um recruta do Exército Brasileiro incorporado no Serviço Militar Obrigatório de 2021, que espelha o sentimento de outras tantas mães que se viram frente a frente com o avesso do desconhecido. Esse não é o primeiro relato ouvido, e – se nada for repensado – não será o último. Sim, precisamos falar de falsas expectativas que viram desencantos para que se reflita que o querer é diferente do poder. Vai além. Traz à tona a necessidade de rever alguns processos, entre eles, a política da obrigatoriedade – com o aceitar sumariamente o desejo do jovem que se apresenta em não querer ser voluntário e pronto – e, principalmente, de uma avaliação criteriosa do candidato que é voluntário. Física e mentalmente.
A vitima não é culpada, mesmo que queiram que pareça ser. Quem tem responsabilidades são àqueles que precisam ser chamados à razão. Não é instituição, são pessoas viciadas e viciantes que se mantém porque não há fiscalização e denúncia. Conivência também deve ser atribuída a quem é de direito e punida. A cultura do medo de não pedir ajuda, e quando pede socorro é nominado como “frangote”, “frutinha”, “frouxo”, “arregado”, precisa acabar. Rever os comportamentos e atitudes para que o cumprimento do serviço militar obrigatório se transformem em ensinamento estrito. Sem firulas.
O alerta serve para ambos os lados. De quem seleciona e aguarda completar o contingente do ano; e do candidato que deseja mas desconhece a realidade, e omite informações relevantes na hora da seleção. Tudo por um sonho (do filho ou da família), que – se mal administrado, mal compreendido diante de uma realidade única – pode virar pesadelo. A expressão “não foi dessa vez” não deve se transformar em vida e morte, mas em apenas resiliência.
Meu filho foi incorporado para cumprir o Serviço Militar Obrigatório em 2021 e não conseguiu seguir o processo. Por qual motivo?
O relato sincero da mãe de um recruta quer trazer à tona a resposta para essa dúvida, diante de casos semelhantes entre jovens que não conseguem lidar com o ambiente do EB e tudo que vem no pacote. Somente, neste ano, o Bizu de Mãe atendeu 9 casos de tentativas de suicídio, problemas mentais e físicos, no primeiro semestre. E nem estou contando os relatos de dificuldades extremas que chegam a decepcionar recruta e família e levam ao sentimento de “amor e ódio” que dura até o fim do ano.
O de Maria* é um dos relatos extremos e que levam à reflexão de como é preciso prevenir para não precisar sofrer. A mãe vai nos contar sua experiência, as dificuldades que o filho enfrentou, a burocracia em lidar diante de uma situação excludente até chegar a baixa definitiva e entrega de certificado militar. Uma surpresa atrás da outra, intensa e desnecessária. Uma vida de um núcleo familiar que seguirá com seqüelas, não tenham dúvidas. Durante sua entrevista, ela pontua um ano inimaginável, intenso, que muitas vezes pareceu que não ia acabar em um looping de problemas causados pelo assédio psicológico e, não raras vezes, pela falta de empatia de quem é responsável em lidar com milhares de jovens. E a dificuldade em segurar lágrimas e raiva em momentos que a história relembra o quanto 2021 será um ano marcante.
Como foi o processo de seleção e expectativas que a família tinha diante do início do processo?
Sou mãe de um dos tantos jovens que aguardam a chegada do ano do alistamento no Serviço Obrigatório Militar com muitas expectativas e sonhos. É claro que nós, pais, ficamos com o coração apertado, porque é uma nova fase. A independência relâmpago para muitos, a distância dos filhos, o novo que se aproxima. Mas, faz parte. Meu filho sempre demonstrou um desejo enorme de estar nas fileiras do Exército desde pequeno, e confesso que eu não tinha vontade que ele fosse, pois conhecia um pouco como funcionavam algumas coisas dentro das Forças Armadas. O coração estava apertado, sim, mas sabia que deveria apoiar meu filho em suas escolhas. Chegou 2021 e meu filho foi selecionado para estar entre os outros tantos jovens que sonham em servir o seu país pelo Exército Brasileiro. Lembro que era um dia ensolarado, muito cedo, quando cheguei com ele todo animado em frente ao quartel ao qual tinha sido designado. Os 30 dias de internato já me davam um aperto de saudades, antes da hora. Diversos jovens aguardavam com seus pais, cada um com uma mochila, alguns com sacolas. Quando meu filho precisou entrar, lembro que entrei no carro com minha mãe e chorei muito, por quase meia hora. Seriam 30 dias sem ver meu filho, sem ter contato. Foram dias difíceis, mas permanecemos firmes, rezando, e mandando pensamentos positivos para que ele e todos os outros vencessem essa primeira etapa.
Foi no período do internato que percebeu as mudanças? O que a levou a acreditar que tinha algo errado?
Depois de alguns dias permitiram uma chamada telefônica rápida dos recrutas com seus familiares, e nesse momento meu pesadelo começou. Eu percebi na voz do meu filho que algo não estava bem. Não reconhecia mais aquele menino alegre, feliz. Mas, imaginei que seria devido aos treinamentos intensos, a rigidez das atividades e obrigações. Muitas outras mães já haviam me dito que, já nesse período, eles mudam um pouco a personalidade. Ficam mais quietos, mais fechados, pois estão recebendo um treinamento de guerra e precisam estar focados. Neste primeiro contato, choramos muito, o que era de se esperar, pois nunca ficamos longe um do outro. Mas, apesar desse comportamento do primeiro contato, meu filho disse que queria vencer tudo aquilo, que apesar de estar difícil queria permanecer. E seguiu a rotina de incentivar com mensagens quando era permitido pelos superiores. Mas, mesmo assim ainda percebia nas entrelinhas que ele não estava bem. Em todos os outros contatos, ele dizia que estava fazendo o máximo para suportar, mas não estava conseguindo se cuidar psicologicamente. Que muitas vezes sentia vontade de fugir, ou até mesmo de morrer, só para sair daquele lugar mesmo sabendo que não era possível. Uma vez incorporado, não tem volta. E isso foi algo que pesou e muito. A falta de possibilidades de conversar com alguém.
Como ele voltou do internato?
Meu filho voltou muito mais magro, muito mais sério, bem bronzeado de sol. Tinha horas que falava empolgado, em outras horas ficava com o olhar perdido, distante, e esses detalhes me chamaram a atenção. Me contou algumas coisas – sérias e outras da rotina do dia a dia – do quanto estava triste, e que não aguentava mais ir para aquele lugar (quartel), mas que, ao mesmo tempo, também queria ficar até completar o ano. Diante do que ele me dizia, corri atrás de me informar mais, de entender o que era possível fazer ou não caso ele desistisse. As ajudas vieram tanto da parte jurídica, quanto médica.
Todas as vezes que ele tinha que ir para o quartel pela manhã, após o retorno do internato, ele entrava em um quadro de pânico. Suas mãos gelavam; meu filho segurava minhas mãos com tanta força, que por vezes chegavam a doer. Parecia uma criança, que não lembrava nem de longe aquele menino cheio de vida e sonhos que eu deixei na frente do quartel, naquele primeiro dia de internato. Durante duas semanas vivemos essa rotina, e como estava no Bizu de Mãe pedi ajuda para a Aline que me indicou uma psicóloga maravilhosa, profissional que o acompanha até hoje.
Quais eram os sinais que seu filho apresentava?
Ele chegou ao ponto de não querer mais arrumar a mochila para sair no outro dia cedo. Entrava em desespero, não queria mais nem olhas as roupas do Exército. E quantas vezes, eu o vi chorando fazendo a barba diante do espelho… Meu coração doía demais e eu percebi que poderia realmente perder meu filho.
O estopim veio, quando em uma tarde de quinta-feira eu fui buscá-lo no quartel com seu pai. Percebi que tinha algo errado porque estava todo sujo, suas calças estavam caindo, – logo meu filho que sempre foi tão vaidoso-, e quando entramos no carro é que percebi as marcas de cortes em seu pulso. Por um momento, não senti o chão nos meus pés. Eu queria gritar, correr, acordar daquele pesadelo, tirar meu filho daquele pesadelo. E, ao invés de ir para casa, fomos direto para uma clinica psiquiátrica, pois não sabia se poderia ou não levá-lo ao Hospital Militar. Cheguei desesperada na clínica, estava a ponto de perder o amor da minha vida. E o segundo baque veio ao ouvi-lo conversando com o médico algo que nunca tinha dito para mim: “eu pensei em dar um tiro de fuzil na cabeça e acabar com tudo aquilo de uma vez”, e por ser um pensamento recorrente, segundo ele, me lembrei que no outro dia, uma sexta feira, ele iria tirar guarda. Desespero dois. Primeiro, não fui avisada pelo quartel da tentativa de suicídio, segundo ouvi algo inesperado. Enquanto o médico fazia os encaminhamentos, meu filho tinha o olhar fixo em um ponto da sala, perdido, distante. (difícil relembrar sem chorar)
Como a família procedeu?
Da clínica fomos encaminhados com urgência para o Hospital do Exército. Sendo circunscrito era necessário que fosse atendido em uma unidade médica militar. Ao sair da clinica, tínhamos a recomendação de internamento devido ao quadro muito grave pela ideia de suicídio e as automutilações nos pulsos. Ele me contou que procurou a médica do quartel, e que disse não estar se sentindo bem, que não estava suportando o lugar. A profissional de saúde prescreveu um ansiolítico, apenas, sem investigar mais detalhes ou pedir um encaminhamento para avaliação psicológica.
No hospital militar tivemos um atendimento muito humano, meu filho ficou internado lá, e eu juntamente com ele, pois entrava em pânico quando eu saia de perto. Precisávamos esperar uma vaga no hospital psiquiátrico. A vaga foi aberta, mas ao chegarmos na clínica conveniada fomos informados que não havia acomodação e que era preciso aguardar em casa até que surgisse algo. Primeira burocracia, decidi junto com o pai dele e minha mãe que optaríamos pelo tratamento domiciliar. Conversamos com o médico que aceito o atendimento remoto. Se as coisas fugissem do controle, iriamos para o hospital. Foi aí que ele passou a dormir comigo, pois tinha medo de estar em seu quarto. Era mais seguro para ficar de olho nas idas ao banheiro ou a cozinha, todas acompanhadas, para garantirmos sua integridade física até que as medicações prescritas começassem a fazer efeito.
E, nesse meio tempo, como ficou a situação dele no quartel?
Ainda tínhamos a parte burocrática para resolver, pois meu filho era um militar. Foram incontáveis dias de idas e vindas ao quartel, para passar informações, receber informações, ser questionada sobre os procedimentos que estavam sendo tomados (por nós). No entanto, em nenhum momento eu soube o que e como tudo aconteceu, nunca me deixaram claro o porquê de não terem percebido os sinais ou dado importância para a fala do meu filho diante do primeiro pedido de socorro. E, nesse meio tempo, os dias viraram meses sem ele poder ficar sozinho, dormir sozinho, pois ainda mantinha pensamentos terríveis e acordava a noite assustado. Nunca contou claramente o que eram esses sonhos, mas diante de conversas pregressas e de situações relatadas do que tinha visto no internato com os trotes, eu conseguia entender.
Foram longos 9 meses de conversas no quartel pessoalmente, pelo whatsapp, por ligações telefônicas até que pudéssemos ter uma decisão definitiva referente ao caso. A partir do momento, que ele se afastou de suas atividades para o tratamento médico, eu nunca mais o deixei entrar sozinho no quartel. Sempre estive ao seu lado. Até hoje ele tem pavor do lugar. Houve a proposta oficiais de que o recruta ficasse atrelado ao Exército até o fim do tratamento médico, mas optamos por não. Só iria atrapalhar, porque ele tinha crises quando sabia que teria que ir a algum lugar que tivesse militares. A farda o assustava. Apesar de eu ter um certo conhecimento de legislação, foi um caminho muito difícil, em que, graças a Deus tive o apoio da minha família e de pessoas como a Aline, do Bizu de Mãe, que foi e continua sendo um anjo em nossas vidas, me ajudando, acalmando, esclarecendo, encaminhando. Mas, precisei me impor. De um lado estava o Exército, uma grande instituição cheio de burocracias, de hierarquia, de silêncios. Mas de outro lado, estava eu e minha família lutando para que meu filho ficasse bem. e, finalmente, após três perícias no Hospital Militar meu filho foi liberado com uma carta de dispensa e de anulação de incorporação.
Qual a importância de não omitir informações durante a seleção?
Ele já havia feito tratamento psicológico quando mais novo, aos 7 anos de idade. E, não contou durante a entrevista do alistamento.E, o Exército, por outro lado, também não se aprofundou em saber histórico médico dele. Para mim, uma grande falha não só na questão psicológica, mas em casos médicos desconhecidos pela família ou omitidos por não dar importância. Mas, que se transformam em casos graves diante de treinamento intenso – e muitas vezes abusivo. Como mãe, percebo que tem muita diferença e isso não é dito por medo. É preciso falar do que é treinamento e o que é abuso. O que é rigidez e do que é violência. O que é abuso que pode ser visto como brincadeira ou pior, nada ser dito porque são orientados a não falar para não serem alvos de preconceito e motivo de chacota. Abusos que viraram gatilhos não administrados e nada claros que fizeram eu perder o filho que eu tinha antes.
Como vocês estão hoje?
Até hoje ele tem pesadelos com o exército, acorda assustado, ainda toma medicamentos. Toda a família ainda sofre. Quando vejo uma viatura do exército, ou mesmo soldados, sinto tristeza, relembro toda a dor e sofrimento que meu filho passou, e que ainda tenta se recuperar.
Ficou muito claro para nṍs que as pessoas que estão à frente de todo esse trâmite/comando, não estão preparadas para lidarem quando o problema surge, não conseguem perceber ou ter a sensibilidade de que ali esta um ser humano, uma família desesperada, que ele não é apenas um número. Não pensam em prevenir antes que possa acontecer o que aconteceu. Seria muito mais fácil!
É claro que recebi, nessa caminhada, uma certa empatia de alguns superiores, de forma pontual. E só começaram a cuidar do caso do meu filho com mais cuidado quando perceberam que eu não recuaria, e que tinha o entendimento jurídico necessário. Não estava sozinha nessa luta, e que iria adiante sem medir esforços.
Qual o sentimento que sobrou diante desse processo todo e quais as medidas que imagina serem necessárias para reduzir ou inibir situações semelhantes ocorridas com o seu filho?
Tenho compreensão que estamos diante de uma instituição que prepara seus soldados para enfrentarem situações de guerras, mas, acima de tudo, precisam ter soldados mentalmente saudáveis. E, não ao contrário. É urgente que haja um olhar mais atento para os sinais que os jovens emitem. É necessário ter um olhar atento para os abusos que são cometidos e que não fazem parte de treinamento, e que são ignorados sumariamente por superiores, que acabam sendo coniventes. É preciso uma investigação médica e psicológica mais aprofundada por parte do Exército, quando os candidatos passam pelo processo de seleção.
Sempre mencionei, antes mesmo do meu filho servir, que não concordava com a obrigatoriedade do serviço militar. Ele deve ser voluntário desde a sua inscrição. A chance de sermos bem sucedidos no que fazemos, começa no que escolhemos. A partir do momento que esses jovens são obrigados a se inscreverem em algo que não desejam, existem grandes chances de algo não dar certo, quando não tendo condução e fiscalização efetiva.
Incentivar é bom, mas devemos ter um olhar apurado e consciente. Principalmente, tirar essa utopia de uma instituição romântica. Não projetem em seus filhos o sonho da farda, pois o sonho carrega um fardo. O exemplo de um, não serve para todos. Se a escolha for do filho em cumprir o ano do Serviço Militar Obrigatório – e ele não for escolhido compulsoriamente caso não queria ser voluntário (sim, isso acontece de forma recorrente para fechar efetivo), apoiem e estejam presentes, e nunca deixem de observar. Caso contrário, vida que segue. Cada jovem é único e nem todos enfrentam essa fase da mesma forma. Incentivar sim, mas sem idealizar como um conto de fadas ideal.
Outro ponto importante é de que se o seu filho tenha passado por tratamento psicológico, psicopedagógico ou esteja em tratamento continuo, instrua para que contem durante a seleção. Não omitam, não mintam no questionário. Porque após estarem lá dentro, isso pode ser um gatilho diante da rotina pesada que levam a consequência que podem ser trágicas.
“Não basta amar, é preciso estar atento o tempo todo, a cada sinal, a cada gesto, e principalmente, apoiar as decisões dos filhos, independente do caminho que eles desejarem trilhar.”
*Maria é um nome fictício, utilizado para não expor mãe e filho.
- Leiam também Os heróis também choram que trata sobre o mesmo tema, escrito por uma militar e doutora em Psicologia.
Meu filho foi conscrito do.ano corrente e passou pelo mesmo problema. Nossa parecia até que eu estava lendo algo que eu mesmo tivesse escrito. Ele chegou a se internar numa clínica psiquiátrica por conta própria pois estava com pensamentos suicidas também. Hoje recebi a informação que ele foi desligado do exército por anulação do ato administrativo, então será como se ele nunca tivesse estado lá mas as marcas físicas e psíquicas ficaram, ele também está em tratamento.
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